28 de junho de 2008

Então, decidi postar aqui alguns dos contos que escrevi e que mais gosto. Todos fazem parte de uma coletânea que denominei "Sobre o Azul".

Espero que quem já leu goste de reler e entretenha-se, e quem ainda não os leu, descubra neles prazeres.




Cor da morte sobre azul



O doutor, caneta em punho, olhou o prontuário e perguntou:

- O que você está sentindo?

- Nada. Respondeu ela olhando-o no rosto.

Ele levanta a cabeça e com expressão de quem não entendeu muito bem e volta a repetir:

- O que você está sentindo?

- Nada. Ela repete.

- Como assim nada? Ele deixa transparecer em sua expressão que, vendo-a, parece óbvio que algo vai mal: a pele branca, os lábios sem cor, o olhar vidrado e arregalado, a voz baixa, quase um sussurro, a respiração difícil.

- Eu não sinto nada doutor, tornou ela. Nem dor, nem tristeza, nem alegria, nem amor, nem raiva, nem ódio, nem ternura, nem carinho. Não sinto absolutamente nada. No meu peito só tem um vazio enorme. Um buraco negro que quando olho para ele me dá vertigem. Ai minhas vistas escurecem, fico tonta e sinto que vou desmaiar. Porque luto; luto para que não me sugue para dentro dele, para eu não me perder nesse vazio. Mas ele está aqui e está me puxando. E eu estou muito, muito cansada de lutar contra ele a minha vida toda...

O médico pousou a caneta no papel cruzando as mãos sobre o mesmo:

- Alguém te decepcionou?

- Não. Fui eu mesma quem fiz isso. Sou um monstro. Você não vê, por que tenho essa cara boazinha, essa voz mansa; mas aqui dentro existe um monstro capaz de pensar coisas terríveis quando se sente acuado. Eu achei que fosse boa, mas não sou. Sou um ser desprezível. Ataque-me injustamente e veja eu me transformar no pior ser que você já viu.

- Todos são assim.

- Será? Não sei... Para mim é tão difícil lidar com isso do que os outros são... Mal consigo lidar comigo mesma... Eu achava que o que sentia era amor; apesar de tudo; era amor. Hoje não sei mais. Parece doença. Mas não sinto mais para saber o que é, sabe? Simplesmente deixei de sentir. Sou esquizóide. Quando acuada “subo” para o meu núcleo e fico vendo o mundo de longe. Nada me atinge. Absolutamente nada. Chego a ter a sensação nítida de que quando ando flutuo. É justamente assim que sei que estou lá me defendendo da vida. Já passei meses entrincheirada na esquizoidia quando me sentia perdida, com medo do que vinha pela frente, com medo de morrer. Mas agora está diferente. Não flutuo e sinto que perdi mesmo a capacidade de sentir. O núcleo virou um buraco negro que quer me sugar e eu estou tão cansada de lutar... Tenho medo de enlouquecer, mas, às vezes, penso que seria tão mais fácil. Tão mais fácil... Também não consigo chorar sabe? Logo eu que sou uma chorona de primeira. Meus olhos até se enchem de lágrimas, mas o choro mesmo, aquele forte que seria redentor, não vem. Não sai.

- Confesso que estava tencionando te encaminhar para a psiquiatria, mas você está tão lúcida e articulada, tão senhora de si que acho que eles não podem fazer nada por você lá que eu também não possa fazer aqui. Você passou por um tremendo estresse emocional, isso é evidente, e está precisando de repouso e de calmante. Vou fazer um soro, você vai ficar deitada umas três horas e neste soro vou botar um calmante. Também vou receitar para que o tome em casa. Poucos dias, só para dar uma relaxada e conseguir ficar mais imune a tudo e a todos e daí voltar.

- Eu não quero voltar. Quero ir embora e para sempre. Eu posso um dia vir a fazer o que penso, posso vir a, de verdade, prejudicar e machucar alguém que achava que amava...

- Me parece que você foi provocada e como você mesma disse: injustamente. Apenas reagiu a isso.

- Mas quem não sofre injustiças nessa vida? Foi a primeira vez que alguém me fez isso? Não. Será a última? Também não. São versões de um mesmo filme; um filme que já vi várias vezes nos últimos anos. Agora, o quê seria do mundo se todos se reconhecessem monstros perante as injustiças sofridas? Se déssemos vazão ao que pensamos? Teriamos muitos mais crimes... E o amor não deveria ser belo e trazer felicidade? Para que seguir lutando quando o que existe reservado para si é o desamor ou quando amar vira uma batalha insana por respeito e consideração? Não. Quero isso mais não...

- Vamos, vou te colocar no soro. Lá você descansa e logo passo para te ver novamente. Hoje, graças a Deus, isso está calmo!

Colocaram-na no soro. A sala é minúscula e fria, muito fria. No entanto ela já não e capaz de distinguir se o frio vem de fora ou de dentro de si mesma. Algo rompeu no seu peito. Existe o vazio, existe o buraco, existe o nada. Ela tentou evitar, tentou desesperadamente colar os pedacinhos, feriu-se e feriu alguém com os estilhaços.

Fica ali deitada olhando as gotas do soro que caem uma a uma. Não sentiu nem picarem seu braço. Ela que sempre teve pavor de agulhas. Está ali, olhando sem ver nada de concreto, vendo apenas “um filme” se desenrolar à sua frente. “Escuta” a frase tão famosa da mãe:

- “Se você fizer algo que me desagrade, fique sabendo que não te amarei mais. Simplesmente te risco da minha vida”.

Cresceu ouvindo isso e acreditando piamente que fosse verdade. Cresceu com medo dessa capacidade que os outros têm de deixarem de amar alguém simplesmente por vontade. Como se as pessoas fossem objetos dos quais a gente se cansa e bota fora quando nos convêm, tendo por motivo apenas a percepção de que elas não são o que queremos que elas fossem.

Ela tentou fazer isso várias vezes durante sua existência, porém não conseguiu nunca. Sim, deixara de amar algumas pessoas e de falar com outras. Mas jamais conseguiu esquecer alguém que fez parte da sua vida. De sentir carinho, de lembrar e rir-se sozinha dos bons momentos. Os maus ela se permitia, com o tempo, esquecer. Só se afastava de alguém quando a pessoa demonstrava capacidade real em lhe fazer mal, e mesmo assim o fazia em silêncio, sem alarde. Parecia-lhe tão estranho isso de riscar de uma existência alguém como se essa pessoa nunca tivesse feito parte da sua vida. Viver sem que nem uma pedra, ou um cheiro, ou um sabor, ou a pétala de uma mísera flor fosse capaz de suscitar reminiscências. Não existência. Nada. Ela também tem esse discurso. Filho de peixe, peixinho é; mas na verdade nunca conseguiu. Passada a raiva sempre ficava com as coisas boas da relação e achava que valia a pena tentar novamente.

Ouviu o irmão, de novo dizer que não a amou nunca. Ouviu o pai, mais distante ainda, dizer a mesma coisa. Era pequena ainda e as pessoas próximas já não gostavam dela. Que sina é essa que traz um bebê fazendo-o capaz de suscitar repulsa nas pessoas que, por via de regra, deveriam amá-lo?

Passou a vida tentando ser alguém que pudessem amar. Amarem independente de qualquer coisa que fosse, ou fizesse. Amaren com defeitos e qualidades. Amarem sem que ela precisasse brigar por isso. Ser amada simplesmente porque existe.

Hoje até sabe que a mãe não tem o poder de deixar de amá-la, e nem a ninguém, mas o mal, o grande e profundo mal, está feito. Ela tentou por anos estabelecer com alguém uma ligação afetiva significativa, mas sem sucesso. Viu as pessoas irem embora da sua vida uma a uma. Todo mundo a festeja. Todo mundo a celebra, mas ninguém fica com ela. Sua vida se resume àquilo mesmo: um espaço minúsculo destituído de qualquer adorno, onde se dopa a fim de não sentir que o mundo não a comporta.

Porém hoje ela sabe. Hoje nada mais é capaz de fazê-la acreditar que um dia haverá para si uma existência de amor. O vazio está ali no seu peito. Algo arrebentou dentro dela sem chance de ser reconstituído. A esperança morreu. Hoje viu sua face nua frente ao espelho e viu também a face das pessoas a sua volta. Hoje sabe o porquê de não a amarem e entende. Aceita.

O médico entra na sala, silencioso, pára ao seu lado, coloca a mão em seu braço e pergunta:

- Grandes olhos tristes, você está se sentindo melhor?

Ela assente com a cabeça enquanto as lágrimas descem pelo seu rosto. Aquela mão... Aquele toque... Ela chora. Finalmente chora. Porém é um choro de despedida da pessoa que um dia foi e que sabe que ficará ali naquele cubículo para sempre quando ela for embora.

O médico puxa a cadeira e se senta. Afaga-lhe os cabelos tal como um pai faz com uma filha. Ela olha para ele e diz:

- Eu morri né? Você sabe; eu morri. Daqui a um pouco vou levantar dessa maca, vou pegar minhas coisas, vou passar na farmácia do hospital para pegar meu remédio e vou para casa. No entanto já não serei mais eu, serei outra. Já não fui eu quem chegou aqui, e também não serei eu quem daqui sairá. Eu morri e vim aqui me enterrar por que não estava conseguindo fazê-lo sozinha. Por isso não tive a sensação de flutuar; não entrei no núcleo por defesa: me transformei nele, no não sentir. O vazio é minha cova e me puxa porque tenho de ir para o meu repouso eterno. Eu seguirei vivendo e as pessoas vão até achar que sou eu, mas não sou. Será o fantasma do que um dia fui. Vou rir, vou chorar, vou viver enfim, mas jamais vou me entregar novamente.

- Será que morreu mesmo? Você pode ser Fênix e renascer das próprias cinzas.

- Eu perdi a fé. Não acredito em mim e nem nas pessoas que vêm maldade onde não existe. E também porque não nasci pra ser amada sabe? Amada com amor maiúsculo. A tal da incondicionalidade que dizem que o amor verdadeiro encerra, seja ele sexuado ou não. Não pude ser amada assim nem pela minha família e nem por ninguém. Tem gente que nasce com essa sina. Sou uma destas. E sempre soube que era. Hoje finalmente aceitei meu destino. Só não me peça para ser feliz com ele. Não vou mais tentar, não vou mais insistir, não vou mais existir. Um dia vou morrer concretamente e o mundo vai seguir como se eu nem tivesse passado por ele. Não deixei filhos, não escrevi um livro, não plantei uma árvore. Fiz um blog, mas com o tempo, se eu deixar de escrever, o Google deleta. Nem do Google vou constar, já pensou nisso? Não constar do Google hoje em dia é não existir. Morrerei e terei uma lápide na qual vai estar escrito: “sinceramente não sei o que vim fazer aqui, mas vim, fiz o melhor que pude, e espero não ter de voltar nunca mais”.

- Seu soro acabou. Você está se sentindo bem para ir para casa? Ele pergunta enquanto gentilmente tira o esparadrapo que prende a agulha ao seu braço.

- Estou sim.

- Fica em pé e vamos ver se tem vertigens ainda, pede ele.

Ela se levanta e sabe que não terá mais vertigens, não entrou no núcleo. É o núcleo. É o nada. As vertigens eram apenas a passagem de um estado para o outro. Caminha até sua bolsa, a abre, pega o batom e passa nos lábios. Guarda-o novamente, fecha a bolsa e a coloca nas costas. Volta-se para o médico que termina de prescrever o calmante numa mesinha de apoio que tem ali. Ele estende a receita, que ela pega ao mesmo tempo que sorri para ele em agradecimento.

- Gostaria de revê-la semana que vem. Estarei de plantão na segunda e na quinta-feira, se puder vir na quinta seria bom.

- Não vou prometer vir não. Vou tentar. É a única coisa que posso prometer a mim mesma a partir de hoje: tentar, mesmo sem acreditar que vá conseguir.

- Se você ao menos conseguir tentar já me darei por satisfeito.

- Obrigada. Por tudo, obrigada.

E saiu da sala.

Ela era um nada indo rumo a nada.

Seus piores temores a haviam vencido.

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