29 de junho de 2008

Cor da elaboração sobre o azul


Estava completamente mergulhada na leitura quando sentiu a brisa bater suavemente em seu rosto. Automaticamente deixou o livro tombar sobre seu colo, embora ainda preso pela sua mão, e levantou a face em direção ao céu com os olhos fechados. Inspirou profundamente, repetidas vezes, até achar que todas as células do seu corpo já estavam banhadas, pelo delicado e inebriante perfume que se desprendia das delicadas flores amarelo-ouro a adornarem a árvore sob a qual estava sentada, porém cujo nome desconhecia.
Abriu os olhos olhando para as árvores do outro lado do lago e foi neste momento que viu uma borboleta, de asas pretas e amarelas, vir voando em sua direção. Surpresa percebeu que a mesma não mudaria sua rota, terminando por pousar suavemente sobre seu ombro esquerdo e começando, imediatamente, a passear pelas suas costas e cabelos. Ia chegar ao seu rosto, mas antes que isso acontecesse, ela resolveu pegá-la com a mão e depositá-la na planta mais próxima.

Imaginando se a borboleta pousar nela era alguma forma de sinal, um bom agouro em relação ao futuro próximo. Esticou as pernas e escorregou malemolentemente no banco até recostar a cabeça no seu espaldar acomodando-se confortavelmente. Fechou mais uma vez os olhos e colocando o livro de lado, recomeçou mais uma série de respirações profundas, um dos métodos eficaz em colocá-la em contato consigo mesma.

Há alguns meses vivenciará uma desilusão profunda quando, após deixá-la por outra, o homem que amava, fomentado pela nova companheira, acusou-a de coisas que não fizera. Aquilo doeu infinitamente mais do que ser deixada por que, se entendia ele não se sentir mais atraído por ela enquanto mulher, não compreendia como, após cinco anos de convivência, podia acusá-la de coisas que jamais faria, nem com ele e nem com ninguém, por não ser da sua índole. Como pôde simplesmente passar a desconhecê-la só porque a mente doentia da namorada resolveu enxergar razões escusas em atitudes inocentes dela para com ele numa reunião social?

Até entendia que na cabeça medíocre da moça, assim como na de noventa e nove por cento da população feminina mundial, esta visse como ameaçadora a convivência pacífica de ambos. Porém, ele agir para com ela como se isso fosse verdade era um absurdo! Quando abriu seu e-mail e leu a mensagem na qual ele desfiava um rosário de improbidades e terminava por dizer que esperava não vê-la nunca mais, acrescentando que o deixasse em paz - como se ela vivesse à cata dele - explodiu numa onda de ódio tão intenso que acabou falando coisas com as quais jamais sonhara em sua vida. Xingou, gritou, ameaçou, e chantageou, pois em hipótese alguma admitiria ser descartada e destratada daquele jeito. Isso era demais até para ela, a rainha da compreensão e do perdão quando se tratava dele.

Quando sua ira arrefeceu e a despeito dos resultados - pois não colocou em prática nada do que disse que faria - ficou chocada com a grandeza do monstro que a habitava e com o quão baixo conseguira chegar para “corrigir um erro”. Foi então que se fez pela primeira vez à mesma e clássica pergunta que há séculos corria mundo: “um erro justifica outro”? Para si não. Nada justificava que tivesse se utilizado de meios tão sórdidos para atingir um objetivo, mesmo que o achasse justo.

E foi ai que a dor da decepção para com o outro se uniu à dor da decepção para consigo mesma e se tornou tão intensa e insuportável, que provocou como que uma rachadura na sua estrutura psíquica por onde sua alma escoou, indo se esconder em algum lugar dentro de si mesma, aonde, apesar de tudo ver, nada podia atingi-la. Ela deixou de sentir.

Se isso assustava algumas pessoas, ou todas, não a assustava por dois motivos: um, porque não era a primeira vez que aquilo lhe acontecia - numa outra ocasião quando se sentiu incapaz de lidar com a realidade circundante, apesar de não ser uma situação afetiva, também alienou-se, voltando a sentir quando o que era novo tornou-se costume - e dois porque se tinha algo que ela não queria naquele momento, de jeito algum, era sentir. Não queria sentir nem a dor e nem aquela espécie de amor, que sabia, ainda havia em si por aquele homem que não a merecia. E também sabia que apesar de todo o seu não querer, e apesar da sua incompreensão para com aquele sentimento, seria este quem a traria de volta ao mundo dos sensíveis uma vez que, ainda hoje, era impossível encontrar com o ex sem que algo dentro dela estremecesse... Mesmo que, de verdade, não soubesse mais do que estremecia... Embora ainda chamasse aquilo de amor, achava que no fundo era puro costume.

E fora isso que acontecera: havia retornado pouco a pouco, já que o conflito entre o que sentia, o que queria e o que podia só encontraria resolução se tomasse posse da totalidade do seu ser. As questões que se propunha só podiam ser respondidas mediante o contato verdadeiro com os seus conteúdos. Quais questões? Várias, mas a mais emergente delas no momento era: “Como podia ainda sentir-se atraída por alguém que sabidamente lhe fazia mal”?

Sim, por que se tinha algo que hoje ela conseguia ver com clareza era que o homem charmoso, inteligente, culto, gostoso, bonito e bem humorado por quem um dia se apaixonara, era também capaz de atitudes terríveis que machucavam profundamente, uma vez que nunca levava em consideração a existência e nem quais conseqüências teriam suas ações na vida de outrem, já que, por mais de uma vez, a atropelara, metafórica e meteoricamente, apenas para satisfazer necessidades suas ou da pessoa com quem estivesse no momento. É, ao longo desses cinco anos “juntos”, várias foram às vezes nas quais se afastaram e tiveram outros parceiros. E embora ela sempre tivesse conseguido mantê-lo à margem dos seus namoros o mesmo não acontecia com ele.

Por mais de uma vez se viu involuntariamente envolvida com as suas relações chegando ao cúmulo, certa ocasião, de ter sido perseguida por uma namorada ciumenta, com a qual convivia ocasionalmente, desconhecendo, no entanto, que eles estivessem juntos. Descobriu por mero acaso e foi só então que percebeu que por muito tempo, ele se mantivera relacionando com ambas, embora entre eles não sustentassem mais o título de namorados. Percebeu também que era a outra quem mantinha a primazia no coração dele e que era por ela que ele fazia qualquer coisa para evitar o rompimento; até pisar nela.

Nessa ocasião chegou a ficar meses afastada dele; mas sentia sempre uma falta tão absurda da convivência que acabou procurando-o como nas outras vezes. E se a princípio a intenção sempre fosse permanecer somente como amiga, isso invariavelmente desvanecia e acabavam na cama. Ele não a amava, mas tinha-lhe tesão. Ela também. E era assim que terminavam novamente por se envolver, mesmo sabendo que dali a um pouco, e a despeito das suas pretensas boas intenções, ele partiria em um outro relacionamento. Ela falava-lhe sobre isso; ele insistia em dizer que valia a pena tentarem... E não houve uma só vez que vê-lo partir não tivesse doído e muito. Não houve também uma só vez em que ele não partisse. Saber não impede a dor.

No entanto não era ingênua a ponto de culpá-lo de ser o vilão da sua existência, embora achasse que algumas responsabilidades lhe cabiam sim. Porém isso era algo que ele tinha de dizer-se e não ela. Tinha plena consciência de que todos os abusos dele foram permitidos por ela que acreditou que perdoando e desculpando sempre, ao invés de quebrar o pau e impor limites, o faria ver o quanto ela era legal e digna de ser amada.

Era a velha história da sua vida com os homens se repetindo. Primeiro foi com o pai, depois com o irmão e agora com ele. Era como se na sua relação com o masculino vivenciasse uma só premissa: “deve existir algum jeito, alguém em quem eu possa me transformar para que possam me amar”. E com isso foi deixando de ser ela mesma, foi colocando-se de lado como se fosse algo ruim que não valesse a pena.

Foi assim que entorpeceu a sua exuberância, a sua autenticidade, a sua criatividade e até a sua inteligência. Tentou ser, com todas as forças do seu ser, uma mulher que não intimidasse os homens. Alguém que eles achassem ter necessidade para viver. Nunca conseguiu. Ficou sempre à margem, nem cá e nem lá. Apenas perdida de si mesma por que ninguém consegue esconder um vulcão em erupção constante. Ele até deixa de entrar em erupção, mas a fumaça continua lá, constantemente avisando que está ativo.

Custou, doeu, sofreu, mas finalmente entendeu que só poderia ser amada sendo autêntica, sendo do jeito que realmente é. Que só pode ser amado quem existe verdadeiramente e que, a despeito de tudo o que dizem por ai, não existe garantia alguma de que, no mundo, alguém venha a amá-la mesmo que em decorrência de laços sanguíneos. Amor só nasce de afinidades.

Estava perdida nesses pensamentos quando sentiu algo muito suave tocar-lhe a ponta do nariz. Abrindo os olhos viu que a borboleta havia voltado a pousar nela. Riu alto e a tirou dali só que desta vez, ao invés de colocá-la em alguma planta, preferiu jogá-la para o alto e vê-la partir.

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