30 de março de 2008

Passarinho voou


Quando a empresa faliu minha mãe começou a fazer salgado para fora. Uma das nossas gerentes arranjou para fornecermos as lanchonetes da Telefônica e com o tempo, os pedidos foram aumentando, graças a Deus, o que permitia que tivéssemos dinheiro para pagar a água, a luz e o gás, para comprar matéria-prima e comida, embora, muitas vezes, comêssemos apenas o que sobrava do preparo dos salgados, pois era o que tinha. Foi uma época difícil.

Um dia, enquanto empanava as coxinhas, fiquei observando minha mãe trabalhando e comecei a pensar no quanto aquele era um trabalho pesado mesmo para ela, talhada no ofício, pois embora me dispusesse a ajudar em tudo, era um serviço muito especializado e minha pouca prática acabava por sobrecarregá-la. Naquele dia fiz o que ainda não tinha feito até então: acabei por me revoltar com Deus. Mas revoltar mesmo. Quando fui para o banho, já debaixo d’água, tive aquela que até hoje foi a minha maior briga com Ele. Xinguei, esbravejei, tripudiei, ironizei, satirizei, chorei... A coisa foi dum tal jeito que juro, caso Ele se materializasse à minha frente naquele momento eu tinha partido pra porrada sem nem pensar duas vezes.

Quando finalmente estava em condições de sair do quarto – claro que minha mãe não aceitava que eu tratasse Deus daquela forma e eu não queria atritar-me com ela, já nos bastava os problemas que tínhamos - qual não foi minha surpresa ao chegar à cozinha e dar com a Dona Maria Ozana sentada à mesa, com minha mãe e a Fátima, a mulher com quem ela vivia há anos. Dona Maria era a resposta de Deus ao meu desespero.

Ela trabalhou durante muitos anos para os meus pais só deixando de fazê-lo quando comprou um bar. O bar com o tempo não deu certo e ela estava desempregada quando, um dia antes, encontrou algum ex-funcionário nosso e ficou sabendo do que acontecera com a minha mãe. Como se recordava vagamente de onde morávamos, “catou” a Fátima e veio andando, atravessando os bairros a pé, até chegar à nossa casa, empreitada na qual gastou seis horas de caminhada. Posta a par da situação, determinou que a partir daquele dia viria todos os dias ajudar minha mãe, e nem a nossa argumentação de que não tínhamos - e nem teríamos tão cedo - dinheiro para pagar-lhe qualquer salário fez com que ela se demovesse do seu objetivo. Respondeu apenas que tinha uma dívida de gratidão para com meus pais e que aquele era o momento de pagá-la e ela o faria. Trabalhou durante seis meses só recebendo a condução e a comida que comia conosco. Quando minha mãe arranjou emprego fixo, ela foi-se levando equipamentos o suficiente para montar um novo negócio para ela. De lá para cá nunca mais perdemos contato.

Dona Maria ousou assumir sua homossexualidade numa época em que isso não era absolutamente aceito. Sofreu toda sorte de discriminação e embora fosse uma excelente cozinheira, não havia, por conta disso, quem lhe desse emprego ou respeito. Meus pais fizeram isso. Mas não foi mérito deles apenas, foi principalmente mérito dela, pois sempre foi a mais correta das pessoas indo contra o estereótipo que incidia sobre os homossexuais na época. Como minha mãe mesmo disse hoje, em anos de labuta nunca sequer ouviu da boca da Dona Maria um “merda” dito num momento de sufoco e olha que estes foram muitos. Ela gostava da sua pinguinha e do cigarro, mas nada era capaz de fazê-la ser menos bondosa ou amável.

Foi com a Dona Maria que aprendi que não é o que as pessoas fazem na cama que determina o seu caráter. Foi ela o primeiro homossexual que conheci e amei incondicionalmente.

Há um ano dona Maria vinha mal de saúde: a diabetes e a cirrose maltratavam-na e hoje a Fátima ligou avisando que os céus retomaram a nossa guerreira. Eu entendo. Deus estava precisando de alguém para trabalhar ombro-a-ombro com Ele, seja lá qual for o trabalho a ser feito.

Leal, corajosa, companheira e divertida, são adjetivos que a exemplificam muito bem.

Nós não vamos ao velório e nem ao enterro. Já foi difícil dar a notícia para minha mãe e a pressão dela subiu muito, mesmo que medicada. Mas isso não é o mais importante, pois ela sabe que quem tem uma divida de gratidão para com ela somos nós.

MUITO obrigado por ter compartilhado a sua existência conosco.

Beijo grande e até qualquer dia companheira!



Com amor,

Jeannine

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