27 de março de 2008

Nada como ser citada por uma amiga, Clara, para você se motivar a escrever um texto que já deveria ter escrito há muito tempo.

A estória é mais ou menos a seguinte: antigamente as pessoas tinham várias fontes de prazer: família, vida social, vida política, a religião, o trabalho, a vida acadêmica e o a vida amorosa. Todos eram peças dum quebra-cabeça que bem composto resultava numa vida cheia de prazeres. Certo? Certo.

Muito mais antigamente ainda, as pessoas sequer se casavam por amor. Os casamentos eram arranjados segundo interesses, principalmente financeiros e sociais. E foi justamente o interesse financeiro que deu início à cultura do amor romântico vivenciada hoje em dia, pois para evitar que a herança passasse a um filho ilegítimo, criou-se a noção de fidelidade feminina e o ideal romântico do “príncipe encantado” que rege as relações atualmente. Então a gente começa a entender que não foi o amor que fez surgir a fidelidade, mas sim que foi a necessidade de manter a mulher fiel que levou à concepção do amor romântico. Claro que a mulher com o passar do tempo passou a exigir isso do seu parceiro e também a ensinar aos filhos que esse era a forma de amar ideal, já que culturada, passou a acreditar piamente nisso.

Os séculos correram e chegamos aos dias atuais onde, embora tenham ocorrido várias mudanças culturais, ainda resiste e insiste essa idealização do amor que mais do que dar prazer, infelicita profundamente a existência das pessoas. Por quê? Porque o amor virou nosso Deus; pede-se ao amor o que antes se pedia a Deus. Ele se tornou nossa única e absoluta fonte de prazer. E é ao redor dele que gravita a nossa existência de tal forma, que chegamos ao absurdo de medir o nosso valor pessoal pelo sucesso ou fracasso em obter e manter relacionamentos. Nada adianta você ser inteligente, bonito, bem sucedido profissionalmente, ter um carrão, morar numa casa de sonhos, viver rodeado de amigos e familiares, viajar duas vezes por ano para qualquer lugar do mundo e ter um saldo bancário de fazer inveja se você não tiver uma relação afetiva; qualquer uma. Os outros te verão como inferior, mas principalmente, você se sentirá inferior até diante daqueles que mal conseguem ter o que comer a cada dia, mas mantêm uma relação estável com alguém.

Esperamos que a pessoa amada faça da nossa existência um evento irremediavelmente feliz, ao mesmo tempo em que tomamos a incumbência de fazer o mesmo por ela. Claro que não dá certo. E não dá certo porque começamos a tratar a vida alheia como se fosse nossa e a nossa vida passa a ser do outro. Mil atitudes são tomadas em nome do que achamos que fará o outro feliz – e geralmente são as coisas que nos fariam felizes – e quando o outro não se sente contente, alegre e saltitante como acreditamos que deveria, nosso mundo desaba.

“Como não se sente feliz depois de tudo o que fiz em nome dessa relação? Depois de eu ter aberto mão da minha existência pensando na sua felicidade! Deixei meus amigos, abri mão do futebol, não fiz mestrado, recusei aquela oportunidade de emprego no exterior só pra poder estar ao seu lado e você não está contente comigo e nem com a vida que levamos”?

Usei uma personagem masculina, mas quem não reconhece esse tipo de queixume? Quem não ouviu algo semelhante a isso em algum momento da própria existência? Quem não pensou isso em algum momento da relação?

Mais certo daríamos no amor, se voltássemos a cultivar os vários aspectos da nossa vida, pois aí estaríamos recuperando as nossas várias fontes de felicidade e tirando das nossas, e das costas alheias, esse compromisso absurdo de cuidar do que não nos compete: a vida alheia. Dessa forma o amor passaria a ser algo possível e plausível, alcançável em cada esquina, pois será apenas e simplesmente um sentimento a ser compartilhado com o outro.


Obs: Este texto e suas idéias tomaram forma e tiveram seu princípio no Grupo "Conversas e Memórias". Muitas destas idéias foram propostas pelo Gonçalo Melo que é o coordenador do projeto.

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