3 de junho de 2007

Este post é dedicado ao Clécio

Cursava eu o 4º ano de faculdade e participava de um grupo de estudo sobre a teoria freudiana cujo orientador era o Valter Apolinário Filho, um dos melhores lacanianos que já se teve notícia. E o era justo por ter deixado de atuar dentro dessa abordagem, optando pela psicanálise – o que comprova que ele entendeu Lacan perfeitamente! rs... Ouvi dizer que ele morreu; o que é uma perda inestimável para a nossa profissão, pois deixamos de usufruir, tanto como profissionais quanto como alunos e pacientes, de alguém que tinha saber válido a oferecer. Mas já divaguei demais, voltando... No grupo de estudos por essa época, estudávamos a constituição e funcionamento do ID (inconsciente), Ego (consciente) e superego e nesse dia em específico era a vez do superego, e o texto era o “Para além do princípio do prazer”.

Lendo o texto enfezei-me de tal forma com o superego que resolvi que ia provar o que nenhum outro psi havia conseguido: que ele era uma instância psíquica inútil. Oras bola, afinal do que serve um órgão de censura se ele não é capaz de evitar que cometamos burradas nessa vida? Não devia ele nos proteger e fazer com que seguíssemos sempre pelos caminhos corretos? Do que adiantava culpa, remorso e arrependimentos depois que já havíamos enfiado o pé na jaca? Não, não, o superego era um inútil!!! Ele sinalizava, levantava plaquinha, tocava apito, mostrava cartão amarelo e vermelho e a gente nem assim parava de fazer bobagens! Aliás, ele continua fazendo tudo isso e a gente segue cometendo os mesmo erros, repararam? E aqui eu não sei bem se queria apenas que o Valter admitisse isso, ou se estava mesmo era com vontade de fazer um tratado e revogar o seu estado de instância psíquica, o que não duvido nadinha em se tratando de euzinha, mas enfim...

Fato é que me dediquei a preparar esse grupo como nunca. Pesquisei, aprofundei, contestei, elaborei e estava pronta pra discutir a questão com o próprio Freud se preciso fosse e pior, com a certeza absoluta que até ele ia reconhecer que o superego era uma perda de tempo nas nossas vidas. Chegado o dia e com o grupo já previamente avisado de que eu iria expor - e como já era famosa por esses meus “achaques teóricos” - não tive problema algum em que me cedessem à vez, pois todo mundo sabia que vinha algo bom pela frente.

Começado o grupo o que vi durante uma hora e meia, foi o Valter sentado de pernas cruzadas e um tanto de lado na poltrona, corado de satisfação – sim ele ficava vermelho quando algo o agradava profundamente - com um sorriso de canto de boca e balançando a cabeça afirmativamente em cada passo e direção que eu assumia no meu monólogo teórico. Porque o Valter tinha isso: ele se deleitava quando um orientando conseguia mostrar que aprendeu tanto que era capaz de ir além do que se era esperado. E nenhuma vez ele pediu a palavra para me contestar ou consertar o que eu dizia: todas as minhas formulações teóricas estavam corretas. Quando terminei eu estava completamente ansiosa pela opinião dele e foi ai que eu vi a coisa mais espetacular que já me aconteceu: alguém derrubar uma hipótese teórica com apenas uma frase.

O que ele disse:

“– Você está absolutamente certa: o superego grita, sinaliza, apita, levanta plaquinha tentando evitar a todo custo que cometamos as burradas que caracterizam a nossa vida. A única coisa para a qual você não atentou na sua perfeita construção teórica, é que o problema não é o superego, ele cumpre a função dele direitinho sim; o x é que quem diz que o Ego escuta? O Ego não escuta. Ego só faz o que quer.

Percebe Cle? Pode soltar o beija-flor que o superego não vai interferir não. Na verdade é o Ego quem está usando o superego como desculpa para o próprio medo de voar.

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